O que os livros de romance nos ensinam sobre o amor - parte I

A Noiva do Tradutor, João Reis

Noiva - eu não estou aqui, viajei para longe. Ou tu pareces acreditar que eu viajei para longe, só pensas nisso, só pensas em mim longe, em mim afastada, em mim sem ti, em ti sem mim. Queres que eu regresse, queres ir ter comigo, queres provar que posso voltar, que estás pronto, que vai correr bem. Mas eu não estou aqui.

Tradutor - onde estás, minha noiva? Para onde foste, para longe de mim, não sei onde estás, sei que estás longe de mim, sei que quero estar perto de ti, mas não sei onde estás. Levou-te o mar, empurrei-te eu, a força do barco, a culpa minha. 

Que faço eu agora? Tu no mar e eu é que afundo, o mundo não faz sentido, tudo apodrece, as pessoas cheiram mal, as ruas cheiram mal, chove, faz frio, estou molhado, estou desesperado, estou sujo, estou sem ti. A atmosfera é escura, as pessoas têm personalidades escuras, todos uns falsos, todos uns ladrões, todos têm a mania que sabem muito, mas eu conheço-os, oh se conheço, eu sei o que eles pensam. Eu vejo como cheiram mal, eu fujo, eu vou comprar uma casa para nós, um espaço de céu para nós, para ti, noiva perfeita, anjo na terra, onde estás? Procuro-te. Perdi o meu chapéu, mas tenho o chapéu de chuva, olha para ele, salto por cima das poças de água, a lama não me toca, as tuas asas fazem-me voar, vou resolver tudo, sei a palavra mágica, digo-a a todos, grito-a a todos, olha, ninguém me entende, não sei o que significa, mas não posso parar, estou quase, tenho fome, alucino, estou quase. Quase.

João Reis, autor do recente romance A Avó e a Neve Russa (Elsinore, 2017), escreveu um conto que é um espaço claustrofóbico de uma cabeça só, uma cabeça que se afunda, que se debate, que olha o mundo com o desespero que tem dentro, enquanto aumenta a distância entre si e o melhor de si, levado pelo mar. Num estilo com sons distantes de Saramago, assistimos ao monólogo de alguém em decadência física e mental, obcecado com uma mulher que é miragem, alguém que se despede do mundo pessoa a pessoa, até o mar levar tudo o que resta.

A Noiva do Tradutor, João Reis

Companhia das Ilhas, 2015

108 pp.

(créditos da imagem: Fnac)