O que os livros de romance nos ensinam sobre o amor - parte I

Depois de ler o texto da Maiúscula sobre o que os livros de romance não nos ensinam sobre o amor, a minha cabeça começou a debater-se com uma questão: se é verdade que não se aprende grande coisa, também é verdade que se aprende qualquer coisa.

Embora nem sempre seja coisa boa.



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Esta linha de pensamento fez-me recordar um livro que tentei ler recentemente, mas que não consegui terminar.

Não Te Conto o Meu Segredo
Samantha Young

Eu sei. Só o título... já promete (inserir rolar de olhos). Este livro foi-me emprestado por uma amiga, em jeito de confidência, para me ajudar a passar o tempo solitário que se adivinhava, uma vez que a minha relação tinha terminado. Não costumo ler livros deste género, mas costumo aceitar sugestões de leitura de amigos, pelo que lá comecei o romance.

Só para esclarecer:
1. A capa é feia todos os dias. Desculpem lá, editores da Lua de Papel. O livro forma uma malinha com as badanas, então lembraram-se de escrever a capa lateralmente. Quanto ao efeito final, digo apenas: quantos livros existem por aí com capas escritas lateralmente? [...] Exato. Não É Uma Boa Ideia.

2. Como se não bastasse ter de torcer o pescoço para ler o título e o resumo da contracapa, esta malvada criação editorial tem também uma apresentação estética que lembra um daqueles romances erótico-históricos (acho que acabei de criar um género novo), cheios de senhoras nobres molhadinhas para ter sexo com homens. Sim, basta ser um homem - é que vai tudo: barões, príncipes, nobres pobres, pobres nobres, enfim, é à vontade da freguesa. Perdão, da nobreza.

Mas! Senhoras e senhores, atenção!

Mais uma dor de pescoço, já que esta história é, na verdade, passada na época atual - ainda que, sim, as personagens sejam de classe alta (burguesia endinheirada, diz-vos alguma coisa?). A heroína é uma americana órfã que decide mudar-se para a Escócia quando atinge a maioridade e recebe a herança dos pais.

Escócia, a sério? (inserir segundo rolar de olhos). Acho que a autora tinha uma lista de «lugares-comuns típicos dos romances leves para senhoras que gostam de ler erótica», copiada de uma pesquisa qualquer da Internet, e decidiu que o seu livro tinha de cumprir todos os requisitos do raio da lista. Só porque os homens escoceses e irlandeses estão na moda? (eu inseria outro rolar de olhos aqui, mas a Maiúscula ia começar a cortar e a dizer que é demais). A Escócia é só um nome neste enredo, podia ser outro país qualquer. Apesar disto, o livro lê-se bem e rapidamente cheguei à página 162.

Enquanto lia, uma sensação incómoda começou a tentar chamar a minha atenção a partir do fundo do meu cérebro, mas eu não estava para aí virada, confesso. Só parei para analisar o assunto quando as páginas 162 e 163 me atingiram os olhos e me fizeram recordar um outro excerto que eu já tinha lido:

[excertos do livro, com alguns cortes meus]
» Deixa-me reformular. - Deu um passo em direção a mim, com os olhos a faíscar. - Quando se trata de ti... não gosto de partilhar. (p. 160)

» Gostas, querida? - [...] Gostas de sentir as minhas mãos em ti?
Bom... Sim!
- Ou... [...] - ...servem as de qualquer um?
[...]
- Vai à merda - respondi [...]
- Que raio foi aquilo ali fora? - perguntou ele, furioso [...]
- Nada que seja da tua conta.
- Andas a foder com ele?
- Não tens nada a ver com isso!
Ele soltou um som grave e irado entre dentes [sic] e puxou-me os braços.
- Uma vez que eu quero foder-te, é da minha conta, sim. E uma vez que tu queres decididamente que eu o faça, acho que tens todo o interesse em responder-me.
- És um imbecil arrogante e egocêntrico, sabias? - gritei enfurecida, determinada a não deixar este imbecil controlar-me. (p. 162 e 163)

Infelizmente, senhores e senhoras (vamos trocar a ordem porque não, as senhoras não têm de ser sempre primeiras), esta heroína de discurso sensato e instintos acertados acaba mesmo por deixar-se controlar por este imbecil arrogante (palavras dela que eu não negaria) e responde-lhe sobre se esteve com o outro rapaz ou não e se quer ou não estar com esse tal rapaz. E quando ela, finalmente, e satisfatoriamente, responde que não às duas perguntas, é que ele lhe solta os pulsos.

Isto é, sem sombra de dúvida, uma situação de controlo. De controlo físico, até. E não me interpretem mal: sou toda a favor de jogos de poder entre parceiros, com um ligeiro controlo físico à mistura também - mas entre parceiros que se respeitam e respeitam os limites um do outro. Obrigar alguém a responder sobre ter estado com outra pessoa ou sobre querer estar com outra pessoa é abuso. Ponto final. Nada sexy.


Era esta a questão a incomodar-me silenciosamente. De forma mais ou menos dissimulada, ela vai aparecendo ao longo da leitura: a heroína, para estar com o herói da história, tem de lhe dar provas do seu bom comportamento sexual e, assim, mostrar-se merecedora.

Ou seja, as mulheres devem dar provas do seu bom comportamento a todos os níveis e mostrar-se controladas e castas para serem merecedoras de amor.

Curiosamente, os homens não têm de responder a questões deste tipo enquanto lhes prendem os pulsos, nem em momento algum são menos merecedores de amor por terem um comportamento sexual mais diversificado.

Essa é uma das coisas que aprendemos com os livros de romance.

E não é coisa boa.

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